ENTREVISTA – Coordenadora do Filmografia Baiana, pesquisadora Laura Bezerra avalia a situação da Cinemateca Brasileira: “Catastrofal, vergonhosa e revoltante”

“É uma catástrofe, Celso Furtado dizia que um povo sem memória é mero consumidor dos produtos do mercado”. A denúncia da professora e pesquisadora da UFRB, Laura Bezerra, sobre a situação da Cinemateca Brasileira, foi feita antes do incêndio que atingiu o galpão que abrigava parte do acervo, considerado como uma “tragédia anunciada”. O risco de incêndio já havia sido alertado por ex-funcionários, que denunciaram a situação precária da instituição. Em entrevista ao Observatório do Audiovisual Baiano, Laura falou sobre o projeto Filmografia Baiana, idealizado e coordenado por ela, e também comentou sobre os desafios desse campo de práticas e pesquisas.       

  1. Acompanhando o trabalho realizado pelo site da Filmografia Baiana em preservar a memória audiovisual da Bahia, vemos o empenho de vocês em suprir uma lacuna quanto a esta salvaguarda. Diante disso, quais foram os principais desafios superados na condução deste processo e quais os que ainda não foram possíveis de superar?

O maior desafio é a obtenção de verbas para manter uma equipe mínima de forma a permitir a atualização constante do banco de dados e a manutenção técnica do projeto. Fora dos momentos em que consigo captar, existe apenas uma EUquipe. Como a produção audiovisual da Bahia aumentou muito, o que é ótimo, não dá pra eu sozinha ficar cadastrando os novos filmes no meu tempo livre. Além disso, hospedagem e domínio do site e base de dados têm custos fixos, sou eu quem paga na maior parte do tempo. Qualquer problema técnico que surja, tenho eu própria que arcar com os custos. Não é fácil para mim como professora. 

  1. Como tem se dado a manutenção e gerenciamento da Filmografia Baiana nos últimos anos e, mais especificamente, nesta atual situação atípica e inesperada com a pandemia?

Conseguimos captar recursos em 2008, 2011 e 2016, aí as coisas andaram. Entre 2008 e 2011 eu até conseguia cadastrar alguns filmes nos períodos de “seca”. A partir de 2014, ficou mais difícil, primeiro porque a Universidade não me deixa muito tempo livre e segundo porque a produção aumentou. Tivemos um bug no sistema da Filmografia Baiana, que vem impedindo o cadastramento. Um colega da UFRB está me ajudando a encontrar os caminhos, vamos resolver em breve e voltar à ativa. Esse contexto de dificuldades não foi alterado pela pandemia.

  1. Destes anos dedicados à pesquisa, o que mais te surpreendeu positivamente ao coordenar a iniciativa independente do site Filmografia Baiana?

Em primeiro lugar, descobrir a diversidade da produção audiovisual baiana. Tem muita coisa pouco conhecida, inclusive no interior. Foi muito bom ver a produção profissional aumentar e se diversificar, ver seu fortalecimento no mercado e, ao mesmo tempo, ver surgir e crescer a produção de mulheres, de negrxs, da perifa. É massa acompanhar esse processo, ver esses filmes insurgentes se impondo. Tem muita coisa boa! Bom também perceber a aceitação do projeto, principalmente pelos cineastas mais jovens, mesmo a FB andando meio parada nos últimos tempos. Gosto muito também de ver nascer o interesse dos estudantes – porque a formação é um dos eixos do projeto – na preservação audiovisual. Preciso que alguém assuma o projeto quando eu não estiver mais aqui, né? Tenho que me fazer supérflua. 

  1. Partindo deste trabalho de mapeamento e pesquisa, como você avalia as recentes políticas de preservação e registro dos filmes na Bahia?

Não temos, pelo menos ainda, uma política de preservação audiovisual na Bahia. Estamos bem longe disso, mesmo que a atual diretora da Dimas tenha um interesse genuíno no tema. Temos conversado e já me coloquei e à FB como parceiras para ações de preservação.

  1. Também deste mesmo lugar, e considerando as recentes ações descontinuadas na nossa política, como você avalia a situação atual da Cinemateca Brasileira?

Catastrofal, vergonhosa e revoltante. O risco de perdermos o maior acervo audiovisual da América do Sul é real. Se algo não acontecer imediatamente perderemos nossa memória audiovisual, não estou exagerando. É uma catástrofe, Celso Furtado dizia que um povo sem memória é mero consumidor dos produtos do mercado.

Além disso, nossa Constituição Federal define claramente a responsabilidade do Estado na Cultura. E o atual governo está se desresponsabilizando, agindo de forma flagrantemente inconstitucional. O pior é que uma vez destruído o acervo, não tem volta. Está perdido. É lamentável! Nosso acervo audiovisual tem enorme valor simbólico, mas também grande valor econômico. EUA e Europa já consideram a preservação como ativo importante para a competitividade da cadeia do audiovisual. O contrário do que está acontecendo aqui.

  1. Para finalizar, dessa vez com uma pergunta de cunho mais pessoal, de onde surgiu esse seu interesse na preservação da memória cinematográfica baiana no que tange a autoria e as ambições iniciais do projeto? Há algo que antecede a verve da pesquisadora neste processo? 

Tem duas coisas bem diferentes que se juntaram. A primeira é minha amizade com os meninos da Lumbra Filmes, desde os anos 1980. Eu venho do teatro, mas trabalhei em vários filmes de Fernando Belens, acompanhava de perto o trabalho de Edgard, Pola e Araripe. Então tinha um contato e um afeto com o Cinema Baiano. Quando vivia na Alemanha, trabalhei no Instituto Alemão de Cinema, na Filmografia Alemã e no Portal do Cinema Alemão. Essas experiências que me deram o know how pra criar a Filmografia Baiana, que apesar de ser uma ação pública (os dados estão na internet, são do mundo) é também um projeto muito pessoal, meu bebê.