ENTREVISTA – “É um trabalho que, realmente, não tem fim”, destaca Iago sobre o processo de catalogação do “Cartografias do Cinema no Recôncavo”

Reunindo mais de 130 filmes, produzidos entre 1923 até 1989, o Cartografia do Cinema do Recôncavo é um projeto de pesquisa, catalogação e difusão dos filmes gravados no Recôncavo da Bahia. Idealizado por Iago Cordeiro Ribeiro, o projeto tem passado por atualizações constantes e vários desdobramentos possíveis, como a disponibilização das obras digitalizadas para o público, bem como a ampliação do catálogo para os dias atuais. Em entrevista ao Observatório do Audiovisual Baiano, Iago Ribeiro falou sobre o processo de mapeamento das produções do Recôncavo, e sobre a importância do investimento em preservação e memória do audiovisual. 

1 – Cartografias do Cinema no Recôncavo é um projeto de pesquisa contemplado com  recursos emergenciais da Lei Aldir Blanc. Como surgiu o desejo de realizar esse mapeamento da produção Audiovisual no Recôncavo? 

Então, a ideia de fazer esse mapeamento da filmografia do Recôncavo veio dessa vontade de conhecer, mesmo, esses filmes antigos, sabendo que existia uma relação antiga do Recôncavo com o cinema. Filmes que foram gravados aqui e ficaram marcados na memória de várias pessoas que participaram ou que viram esses filmes sendo filmados. A pesquisa começa de forma autônoma assim por interesse mesmo, a partir do momento que você… No caso eu, começa a descobrir certos filmes, a vontade de mostrar isso, organizar isso, e mostrar isso para outras pessoas. Como tem uma cinematografia vasta filmada na região do Recôncavo, a partir disso, a gente pode refletir sobre como ela representa o Recôncavo ou rever essas imagens a partir de uma ótica contemporânea e refletir sobre elas e sobre as imagens que estão sendo criadas hoje.   

2 – Para que pudesse ter um ponto de partida no trabalho de levantamento das produções, quais foram as principais fontes de pesquisa? 

A principal fonte de pesquisa do Cartografia é a base de dados da cinematografia brasileira, que é um trabalho extenso que foi feito na Cinemateca de catalogação dos filmes brasileiros, mas como a gente sabe, cada catalogação que é feita nesse sentido, quanto mais específica, mais profunda ela é né… Então, tem a filmografia brasileira, que é esse trabalho feito pela Cinemateca Brasileira, que contempla toda a produção nacional. Tem também a Filmografia Baiana, que foi feita pela Laura Bezerra aqui na Bahia para justamente catalogar a filmografia baiana. Ela conseguiu descobrir uma série de outros filmes que não estavam presentes na cinematografia brasileira, ou seja expandiu ainda mais essa base de dados. Quando eu vou fazer essa pesquisa dos filmes que foram gravados no Recôncavo, descubro ainda mais, dos que foram feitos na Filmografia Baiana. Acho que isso é importante, realmente sempre é um trabalho muito extenso e nenhuma dá conta de catalogar tudo, mas esse trabalho quanto mais específico, mais aprofundado ele pode ser.. Então, acho que essa é uma das importâncias da descentralização desse pensamento sobre memória. Porque, quanto mais específico é essa pesquisa (mais) você consegue aprofundar e levar em conta as especificidades de cada região, de cada local e de cada filmografia. Para além dessas fontes, que são catalogações com esse intuito de memória e preservação,  como a filmografia brasileira e a filmografia baiana onde a gente encontra já as informações bem organizadas e bem estruturadas, para encontrar esses outros filmes que não estavam na catalogação foi realmente na pesquisa individual, a partir de conversas com as pessoas, pessoas de Cachoeira que conhecem a história, pessoas do Recôncavo que têm alguma relação com o cinema, arte. Em livros, também, que pudessem citar filmes e nos arquivos que a gente teve acesso. Porém, com a dificuldade da pandemia a fonte ficou um pouco menos acessível, trabalhando também com o acervo da Cinemateca da Bahia, como acervo da TVE, com acervo de outros arquivos que possam ter filmes que foram gravados aqui e que estão fora dessas catalogações. 

3 – Sabendo que a plataforma  já conseguiu catalogar mais de 130 obras, reunindo produções realizadas entre os anos 1923 à 1989 no Recôncavo baiano, quais foram os desafios ao longo do processo de pesquisa e de catalogação? 

Em relação aos desafios, são inúmeros. Esse desafio de encontrar informações sobre filmes que a gente tem muito pouco dados, que estão na memória das pessoas, às vezes a pessoa precisa falar sobre o filme que ela não sabe o nome, não sabe o diretor… Essa dificuldade da pesquisa mesmo, de ir encontrando, a partir dessas fontes, quais são esses filmes, às vezes a dificuldade própria de encontrar esse filmes, encontrar onde estão as cópias, em quais condições estão essas cópias… É um trabalho que a gente ainda está fazendo. Depois da catalogação, a gente quer realmente encontrar esses filmes, ou tentar encontrar. Sabemos que muitos deles já se perderam, porém o nosso desafio é encontrar todos eles e, posteriormente, ainda trabalhar na restauração e na digitalização, para que possam ser assistidos de forma acessível, como já tem alguns no site do projeto.  

Site catalogou mais de 130 obras, produzidas entre 1923 e 1989

4 – Tendo em vista que nem todas as obras foram encontradas, outras que não foram digitalizadas, algumas perdidas, a partir do que vem sendo pesquisado, quais são as características em comum das obras produzidas no Recôncavo no século XX? 

Sobre as características em comum é uma pergunta bastante difícil, até porque são obras muito diversas, de tempos diferentes, formatos diferentes. Porém, algo que eu acho que une a maioria delas é o fato de que a maioria foi feita por outras pessoas de outras regiões, ou seja, há um deslocamento para se filmar aqui, algo interessa alguém de fora que vem filmar aqui. A produção local começa muito depois disso. Ali, pelos anos 80, você tem Arnoul Conceição que começa a produzir aqui, é uma pessoa nascida em São Félix, um são felista que começa a fazer cinema de forma independente. Porém, boa parte dessa filmografia é feita por pessoas de Salvador, outros estados, até de outros países. Então, é interessante como eles buscam, ou melhor, os filmes buscam um fator, um aspecto do Recôncavo que os interessa, um aspecto único do Recôncavo que seria marcante dessa região para o olhar daquela época. Então, você tem no início dos anos vinte, trinta, quarenta até cinquenta, também, o aspecto econômico era muito presente nos filmes. Eram filmes de curtas-metragens documentais, muitos filmes jornais, os complementos nacionais que eram chamados também.  Então, você pega ali o ciclo do tabaco, do petróleo também na década de 50, depois você começa a ver a relevância que o Recôncavo tem no cenário cultural,você começa ter filmes sobre as manifestações culturais próprias do Recôncavo também. A feira do Caxixis em Nazaré das Farinhas, que é a venda dos produtos de cerâmica feitos lá em Maragojipinho. Seja o samba de roda, o candomblé, as festas das irmandades aqui, aqui é a Irmandade da Boa Morte, as festas de Santo Amaro da Lavagem de Santo Amaro e outras manifestações que são próprias do Recôncavo e que passam a ser mais valorizadas nessa época, a partir da década de 60, 70… Então, eu acho que todos esses filmes, de alguma forma, vêm buscar no Recôncavo um  aspecto que é típico, que é único assim da região, pelo menos em cada época, em diferentes épocas que foram gravados

5 – Estamos vivendo em um momento político, principalmente em instâncias federais, de total abandono à cultura. Qual a importância de iniciativas como essas para o Audiovisual baiano?

Realmente, a gente está vivendo um momento muito complicado. Um apagão da cultura, uma negação total da cultura e da história. A gente pode ver a própria situação da Cinemateca Brasileira, esse descaso completo com o intuito realmente de apagar essa memória. Eu acho extremamente importante e vejo que a Bahia vai também numa contramão disso, enquanto a Cinemateca está completamente abandonada, perdendo totalmente as suas forças institucionais, a Bahia vem numa contramão, justamente  institucionalizando a sua Cinemateca. Tentando pensar essa memória audiovisual da Bahia de uma forma institucional, fortalecendo esse campo da memória que durante muitos anos, foi deixado de lado. 

6 – Agora, com o site “Cartografias do Cinema no Recôncavo” já publicado, quais os trabalhos que o projeto ainda pretende realizar? Existe a pretensão de ter uma atualização contínua?  

O projeto Cartografias do Cinema no Recôncavo tem muitos desdobramentos possíveis. A gente dividiu  a pesquisa em duas partes, a gente fez até o ano de 1989 por questões metodológicas mesmo, é uma quantidade muito grande de filmes e de matérias para se lidar. Já está prevista uma atualização para a gente catalogar essa filmografia até o tempo atual. Além de que a própria pesquisa, até os anos de 1989, está sendo sempre atualizada, o tempo todo ainda continuo encontrando novos filmes , tendo informações de outras produções… É um trabalho que, realmente, não tem fim. Além de que há diversos outros desdobramentos, porque justamente a preservação é um trabalho contínuo, a gente está sempre no trabalho disso chegar nas pessoas, de fazer com que as pessoas assistam e reflitam sobre essas obras, além de preservar elas. O Cartografia é um processo de catalogação não de preservação, ou seja, a gente não está preservando os filmes, a gente está dizendo que eles existem, dando as informações sobre eles. Porém, isso pode sim se transformar em um acervo real de filmes ou virtual, com essas obras em qualidades de preservação, são desdobramentos que a gente vai trabalhando sempre da melhor forma possível de fazê-los acontecer.