Que o Estado se preocupe não apenas em desenvolver políticas de fomento e distribuição, mas também de preservação de imagens”, defende Edyala Yglesias

Em entrevista ao Observatório do Audiovisual Baiano, Edyala Yglesias, roteirista e diretora do episódio “Diário do convento” – um dos três que integram o longa baiano “3 Histórias da Bahia” – falou sobre o processo de produção da obra, que completou 20 anos de estreia no último dia 31 de maio. Entre os pontos tratados, a diretora destacou a importância de políticas de fortalecimento do audiovisual no estado e no país que também abarquem a “preservação de imagens”, e a defesa de um compromisso de longo prazo para a construção de uma indústria audiovisual forte e produtiva.

1.     São 20 anos desde o lançamento do longa ” Três Histórias da Bahia”, no dia 31 de maio de 2001. Esse lançamento veio após uma lacuna de mais de 20 anos sem produções de longas-metragens no estado. Quais eram os principais empecilhos para se realizar grandes produções na Bahia naquele momento?

É inacreditável, mas os empecilhos continuam praticamente os mesmos. Falta de uma política de produção audiovisual, na Bahia, organização e de estrutura que possibilitem a existência e a sustentabilidade de uma. Vivemos as “sociedades do espetáculo”, em que a imagem está no centro das relações sociais e nosso governo não está preocupado em formar profissionais ou em criar conteúdos nessa área estratégica ao desenvolvimento social, econômico e cultural do nosso país.

Continuamos sem políticas de produção, distribuição, formação de público e de construção da memória nacional, mais do que nunca necessária nessa época da mídia digital, de pouca durabilidade, que o Estado se preocupe não apenas em desenvolver políticas de fomento e distribuição, mas também de preservação de imagens. 

2. O filme “Três histórias da Bahia” foi resultado de um concurso de roteiros de curtas que premiou cada um dos diretores envolvidos nessa produção. Como foi o processo de transformar esses três roteiros numa obra de 90 minutos?

A proposta do concurso, lançada pelo Dimas, setor da Fundação Cultural da Bahia voltado para o audiovisual e dirigido na época por Walter Lima, foi uma forma interessante, em princípio, de possibilitar a existência de um longa-metragem baiano, agregando três filmes de média metragem.  A produção de diferentes roteiros catalisou uma energia coletiva em torno de histórias, cenários, elencos, produtores e diretores diferentes, um desejo longamente represado de fazer cinema corria solto feito as cachoeiras de Humberto Mauro. 

O carnaval era o elemento comum a todos os três roteiros selecionados.  “Carnaval” não como coincidência ou como disseram alguns na época, “encomenda do governo”, mas como a expressão de uma cultura comum. Três diretores de formação muito diversa, mas todos nascidos e criados na Bahia. O “Diário do Convento”, episódio que escrevi e dirigi, tratava da história de uma enclausurada do século 17, narrada em paralelo à busca contemporânea de uma jornalista por um possível diário, que legitimasse sua história. Uma metáfora para a busca das mulheres excluídas da “grande” História; enquanto do lado de fora, o carnaval toma conta das ruas de Salvador. 

Momentos de extrema poesia, de generosidade das equipes envolvidas, mas também de extremo desgaste e penúria de recursos me fizeram constatar, de um lado, nossa fome de gestar imagens próprias; do outro lado, a impossibilidade de fazer cinema sem um compromisso de longo prazo de toda a sociedade. O Brasil nascido na Bahia sofre de uma esquizofrenia cultural e de uma alienação estrutural. Desde a nossa “descoberta”, imagens e representações foram criadas pelo olhar do colonizador, espelhos em que fomos obrigados a reconhecer nossas faces. Imagem, cinema, audiovisual é coisa séria, os gringos sabem disso.

3 Histórias da Bahia: Diário de um Convento (2001) | Foto: Lúcio Mendes

3. E passados 20 anos desde esse marco para o cinema baiano, como você avalia a evolução do financiamento ao cinema baiano? E quais desafios ainda temos de superar?

Temos que superar essa nossa “alienação” estrutural, que faz com que nossos representantes no Congresso votem contra o futuro de seus filhos e netos, nos empurrando garganta abaixo a Medida Provisória 1018. Não queremos pacto com o atraso; queremos indústrias criativas e não poluentes.  A APC, dentre outras entidades, está em luta para convencer o que já deveria ser óbvio para toda a sociedade:  a construção de uma indústria audiovisual forte e produtiva no Brasil. 

Estamos todos, todas e todxs habituados a lutar e não fugiremos à luta; mas bem que seria mais estimulante enfrentar a luta da criação do novo, do pavimentar estradas para que vinte anos depois, em lugar de lutar pelas mesmas causas, estivéssemos lutando por um voo mais alto e mais livre para o cinema e o audiovisual baiano e brasileiro.

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Três pontos me animaram a falar da minha experiência do ponto de vista de diretora de O diário do convento, um desses episódios do filme 3 Histórias da Bahia: a iniciativa do Observatório Audiovisual de marcar a passagem dos 20 anos do lançamento do filme; minha recente participação na APC Bahia que me atualizou na luta por políticas públicas para uma produção audiovisual vigorosa e sustentável e minha experiência na área da Embrafilme que lidava com a produção de filmes de CM e MM.  

 A produção de 3 Histórias da Bahia, apesar da sua importância como elemento de retomada da atividade na Bahia, apresentou problemas que impactaram enormemente o desenvolvimento do projeto e que deveriam e poderiam terem sido evitados. Daí a utilidade de falar deles nessa comemoração. Uma análise do orçamento de produção dos três filmes, por exemplo, se tivesse sido feita a priori de forma mais detalhada talvez tivesse evitado os percalços como peça fundamental que é da realização principalmente quando se trabalha com recursos tão exíguos. 

 A produção executiva do projeto foi terceirizada como é lógico; a finalidade do órgão estatal não é evidentemente produzir filmes e sem dúvida essa terceirização era necessária. Entretanto, uma decisão de contratar um produtor executivo de fora do estado, que implicou em custos adicionais como os relacionados a passagens aéreas, moradia e alimentação, significativos para o diminuto orçamento previsto para o projeto foi, sem dúvida, equivocada para a saúde orçamentária do projeto.

 Se de um lado, a Dimas tinha contratado diretamente um produtor executivo; do outro lado, tinha aberto edital de seleção de roteiros; cabia-lhe como criadora e financiadora do projeto, coordenar os contratos e intermediar sua realização. Como diretores dos projetos selecionados, não conseguimos nos fazer ouvir pela produção executiva para a elaboração conjunta de um cronograma de produção. Nem mesmo para relacionar o conjunto geral de prioridades do projeto (que reunia três filmes em um) ou para estabelecer as prioridades de cada um dos filmes foi possível. Talvez as bases do contrato entre Dimas e o produtor previssem essa atuação a meu ver, top-down e improdutiva; não sei, mas lembro que esse posicionamento gerou muita insegurança e quando latas de negativos (item representativo no orçamento, como se sabe) foram compradas sem que fossemos ouvidos, consideramos fundamental revermos as bases do nosso acordo de produção com a Dimas. 

 Nossa preocupação era atentar para a adequação dos custos ao orçamento previsto pelo Edital para os projetos; afinal interromper filmagens, todos sabemos, ocasiona incalculáveis prejuízos ao filme em todos os seus aspectos. Apesar das pressões sofridas, decidimos que sem haver um acordo sobre um cronograma conjunto para a produção não tínhamos condição de começarmos a filmar. A Dimas, não tendo conseguido resolver esses problemas, decidiu transferir como pagamento ao produtor executivo os recursos previstos para a realização dos três filmes de média metragem que compunham o longa. O projeto retornou assim à estaca zero. 

 Para que estejamos hoje comemorando os vinte anos de 3 Histórias da Bahia, os realizadores tiveram também que se empenhar na obtenção de novos recursos junto ao Governo da Bahia para produção do filme. Finalmente, a Dimas contratou Moisés Augusto da produtora Truq, que tomou a frente da produção e os filmes foram postos na lata. Mas a luta parece ser infindável. Um pesquisador da Ufba, estudioso do cinema baiano e devidamente identificado, tentou ver o filme na Dimas para sua tese de doutorado e bateu com a cara na estúpida regra de que só com um mínimo de 20 pessoas seria possível ver aquele filme. Sem cópia digital, o filme não foi visto nem estudado por Jober Pascoal.